A CARTA
poema-diálogo
(José Fortuna - grav. José Fortuna e Maria Helena)
- Recebi uma cartinha hoje estou muito feliz
veja, é de minha esposa, vamos ver o que ela diz.
Ao lado do meu fuzil neste campo de batalha
pode troar os canhões e espoucar as metralhas
quero um minuto de paz para esta cartinha eu ler
eu já posso imaginar o que ela manda dizer.
veja é como eu imaginava
-
- O nosso filho, Carlinhos, quer que você volte logo
pra brincar de cavalinho...
- Esse meu filho é peralta. Parece que ouço agora
ele dizer: Mamãezinha, como eu gosto da senhora.
Bem, mas vejamos o que diz mais.
-
- O papagaio cresceu e os primeiros palavrões o bichinho já aprendeu,
mas vamos ao que interessa. Escrevi pra lhe dizer
que esta é a última carta que de mim vais receber.
Sofrendo necessidade, cansada de te esperar,
arranjei um outro homem para ocupar teu lugar.
Eu peço que me perdoe e não te esqueças de mim
foi a fome e a miséria que obrigou-me a agir assim.
-
- Meus amigos, vocês ouviram?
Eis a carta da traição, suas palavras são punhais varando meu coração
Está aqui, querem ler? Veja o contraste, senhor.
Vencer a luta da guerra e perder a luta do amor.
Ela me abandonou, não é para enlouquecer?
Quanto é grande a minha dor, quanto é triste o meu sofrer,
mas que culpa eu tive, meu Deus. Não fui eu que quis a guerra
foi o destino que um dia levou-me pra longe dela.
Maldita carta, maldita, vou te fazer em pedaços
Oh, carta por que trouxeste o aviso de meu fracasso?
Atiro-te ao chão, carta ingrata, pois tu mereces o pó
porque também me deixaste no mundo sofrendo só.
Pedacinhos de papéis, veja o carimbo: Brasil, e eis a data cruel: dia primeiro de abril.
Dia primeiro de abril?
E não seria, amigos, talvez uma brincadeira que ela quis fazer comigo?
Sim, talvez seja isso, onde está, deixa-me ver
o finalzinho da carta que eu não cheguei a ler. Está aqui:
-
- Meu bem, desculpe eu ter brincado assim. Você acreditou? Bobinho!
Você é tudo pra mim.
Hoje é primeiro de abril, por isso é que eu menti
mas a verdade é que eu vivo sempre esperando por ti
é mentira quando eu disse que passo necessidade
saudade também alimenta e eu vivo dessa saudade
ao regressares querido, aqui hás de me encontrar
aguardando teu regresso em nosso pequeno lar.
Ao terminar esta carta aceite com todo o ardor
milhões de beijos e abraços e até breve, meu amor.
-
- Oh, como eu sou bobo, meu bem, tiveste a certeza agora
Quanto eu te amo, querida. Quanto minh’alma te adora
Viu como ainda por ti de amor minh’alma delira,
oh meu bem, eu te agradeço esta sublime mentira.